terça-feira, 23 de agosto de 2011

Licença Paternidade: 120 dias para o pai adotante único.



As relações familiares estão se modificando dentro de nossa sociedade. Uma das espécies de entidade familiar que vem crescendo bastante na sociedade moderna é a família monoparental. Regulamentada no artigo 226, § 4º da Constituição Federal, tal núcleo é formado por apenas um dos pais e seus descendentes.

Algumas dúvidas surgem acerca de direitos que foram concebidos tendo apenas como modelo a família criada por um homem ao lado da mulher e os seus filhos. Licença paternidade é um exemplo disso. Sem qualquer diferenciação em relação à realidade vivida pelo pai, tal direito foi relegado ao esquecimento por parte do Estado. Tal tratamento deve acabar. Caso clássico de desrespeito acontece quando um homem solteiro adota uma criança.

A Constituição Federal garante o direito à licença maternidade e licença paternidade em seu artigo 7º, XVIII e XIX, mas a Carta Magna não estabelece o período de gozo da licença deferida ao pai. Apenas no artigo 10 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias fica – provisoriamente - estabelecido o prazo de 05 (cinco) dias da aludida licença.

Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição:

(...)

§ 1º - Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7º, XIX, da Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o inciso é de cinco dias.

Essa é a única normatização acerca do prazo da Licença Paternidade, no entanto, não se relaciona com o caso em tela, pois aqui não estamos a tratar da licença paternidade comum, mas sim de Licença Paternidade destinado a pai solteiro. Para chegarmos ao deslinde da questão e à confirmação de que se trata de modalidade distinta de Licença Paternidade será necessária uma averiguação acerca da natureza jurídica de tal benefício.

A Licença Paternidade é um direito que sempre fora colocado em patamar secundário de importância. Dentro da cultura machista que domina nossa sociedade, o papel de educar os filhos sempre coube à mulher. O papel destinado ao homem dentro de uma sociedade fundada num modelo patriarcal sempre fora o de mantenedor da casa. Essa manutenção estaria ligada apenas aos aspectos financeiros. O homem poderia ficar alheio às exigências do cotidiano de afetividade e educação dos filhos. Tais tarefas pertenciam apenas à mulher.

Mas, até essa proteção com o estabelecimento da licença maternidade, iniciado pela conveniência na delegação de exclusividade das tarefas domésticas, não foi dado de bandeja ao público feminino. O momento da maternidade nem sempre fora respeitado, com diversos relatos históricos de mulheres trabalhando em condições que agrediam a sua gestação. Seria absurdo destinarmos a conquista da licença maternidade como uma doação ao público feminino. Não. Não foi. Foi mais uma conquista das reivindicações trabalhadoras após uma história de exploração feminina.

Embora tenha sido um direito conquistado pelas mulheres, a Licença maternidade não é um direito destinado apenas às mulheres. O lapso temporal indicado enquanto afastamento das atividades profissionais é também um direito da criança. Aliás, está plenamente correto afirmar que a licença maternidade tem como escopo principal a proteção da criança. Ao contrário do que se imagina, o período de licença maternidade não é apenas destinado à recuperação da mãe.

Tal definição tem origem na doutrina da proteção integral definida pela Constituição Federal em seu artigo 227:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O que se deve deixar bem frisado é que se trata de um DEVER do Estado proporcionar todas as garantias fundamentais ao desenvolvimento humanitário da criança, à formação plena de um ser humano hígido. Esse aparato principiológico de direitos encontra amparo imperativo no capítulo dos Direitos Sociais insertos na Constituição Federal.

Assim reza o art. 6º, CF/88:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

E nessa toada, levando-se em consideração o consagrado princípio da isonomia (art. 5º, caput, CF), não se deve jamais restringir a proteção somente à “maternidade”.

Constituindo-se, hodiernamente, na concepção mais progressista e humanística da matéria, tanto maternidade quanto paternidade na adoção, inserindo-se também a família monoparental. Todas essas hipóteses enquadram-se no instituto da entidade familiar, o núcleo social e afetivo onde se exerce o poder familiar.

E é exatamente na não distinção dos iguais, no tratamento paritário dos desiguais que se debruça tal pleito administrativo e sua razão meritória jurídica. O princípio da isonomia ínsito no art. 5º, caput, e inciso I, da Constituição Federal, no patamar de cláusula pétrea e direito fundamental, assim delimitado:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

O direito em destaque é mais uma das hipóteses de consolidação da norma constitucional. O período destinado à mulher trabalhadora é o momento de interação física e psicológica da mãe com o seu filho. É instante destinado ao acompanhamento da saúde da criança, do seu desenvolvimento e de sua personalidade iniciante. É durante esse convívio mais próximo e integral que uma mãe saberá os hábitos do infante, a exemplo do que gosta de comer, a hora que dorme, como reage a determinados remédios ou até mesmo se possui algum tipo de alergia. Os primeiros contatos serão definidores para toda uma vida em família.

As razões de uma proximidade maior, em regra, do filho ou filha com a sua mãe, em detrimento do papel masculino, não é advinda apenas por aspectos biológicos, mas também culturais. A cultura ocidental reforça uma suposta superioridade materna no cuidar da criança. Essa distinção irracional, como dito anteriormente, é feita em benefício do homem e em detrimento da mulher, uma vez que delega o papel dos cuidados para com os infantes apenas à mulher. Essa não é a vontade da Constituição ao garantir que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

O §5º do artigo 226 da CF ainda explicita no mesmo sentido:

§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

Um único aspecto biológico que justifica a diferença de tratamento dado ao homem em prol do direito concedido às mulheres é a amamentação. Ainda sob o prisma da proteção integral destinada às crianças, existe justificativa para se diferenciar a Licença Maternidade da Licença Paternidade em relação ao infante que necessita do leite materno. O que não é o caso da criança adotada.

Primeiramente, é importante trazer ao presente escrito que o pai solteiro e sua criança são reconhecidos enquanto entidade familiar, nos termos do §4º do artigo 226 da CF e gozam de toda a proteção do Estado. Uma entidade familiar, portanto, com a ausência de uma mãe.

O Estatuto da Criança e do Adolescente afirma em seu artigo 42 que poderá ser adotante “os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil”. A adoção em tela está amplamente consolidada na legislação e na realidade brasileira, no entanto, as consequências pragmáticas da aplicação de tal direito ainda necessitam de ampla regulamentação.

A Licença Paternidade de pai solteiro não pode ser interpretada como a Licença Paternidade comum, concedida em paralelo com a Licença Maternidade. As diferenças evidentes fazem com que a sua aplicação legalista signifique tratamento inconstitucional, posto que trata-se de direito da criança e esta não poderá sofrer discriminação e perder esse momento de interação com a pessoa encarregada do Poder Familiar, seja um homem, seja uma mulher.

No caso da adoção, assim trata a CLT sobre a concessão de licença maternidade às adotantes:

Art. 392 - A empregada gestante tem direito à licença-maternidade de 120 (cento e vinte) dias, sem prejuízo do emprego e do salário.

Art. 392-A. À empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança será concedida licença-maternidade nos termos do art. 392, observado o disposto no seu § 5º.

Na redação anterior, a Consolidação das Leis do Trabalho definia prazos diferentes para a Licença Maternidade a depender da idade da criança adotada. Tal diferenciação fora explicitamente revogada. Vejamos a legislação retirada do ordenamento jurídico:

§ 1o No caso de adoção ou guarda judicial de criança até 1 (um) ano de idade, o período de licença será de 120 (cento e vinte) dias. (Revogado pela Lei nº 12.010, de 2009).

§ 2o No caso de adoção ou guarda judicial de criança a partir de 1 (um) ano até 4 (quatro) anos de idade, o período de licença será de 60 (sessenta) dias. (Revogado pela Lei nº 12.010, de 2009).

§ 3o No caso de adoção ou guarda judicial de criança a partir de 4 (quatro) anos até 8 (oito) anos de idade, o período de licença será de 30 (trinta) dias. (Revogado pela Lei nº 12.010, de 2009).

A Lei 12.010/2009, que estabeleceu todo o sistema atual da adoção, revogou a diferenciação de períodos de licença maternidade distinguidos pela idade da criança. Tal norma ainda estabelecia o teto de oito anos para a concessão do benefício, o que contrariava o Estatuto da Criança e do Adolescente e a própria Constituição Federal que não definiu tipos diferentes de crianças ou jovens.

De acordo com o ECA, Considera-se criança(...) a pessoa até doze anos de idade incompletos” e qualquer tratamento discriminatório por idade é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro no artigo 3º, IV, da CF.

A jurista Maria Helena Diniz conceitua (1995, p. 282):

A adoção vem a ser o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consangüíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que geralmente lhe é estranha.

A criança a adotada, em via de regra, não conhece anteriormente o adotante. A relação familiar vem ao mundo a partir de regras de Direito, mas impera o total desconhecimento das regras da vida, das regras do amor. Apenas a convivência poderá delinear qual a verdadeira relação surgirá a partir daí. Esse momento de interação além do período comum, tal qual se define enquanto licença maternidade é crucial para a criança.

Ao contrário da gestante, no caso da Licença Maternidade deferida à adotante, não se justifica qualquer diferencial em relação ao homem e sua Licença Paternidade. Aqui não entra o aspecto biológico da amamentação enquanto fator consubstanciador de diferenciação lícita.

Sem sombra de dúvida, torna-se medida constitucionalmente imperativa a concessão de licença paternidade ao pai solteiro, adotante único, nos mesmos prazos e condições da Licença Maternidade, nos termos dos artigos 392 e 392-A da CLT. O instituto da adoção não se restringe somente às mulheres. Sendo assim, deve também ser assegurado ao pai adotante solteiro esse período de licença sem prejuízo do seu salário.

Tal interpretação não traz matéria inédita em sua caracterização da Licença Paternidade. Nesse mesmo sentido foi aprovado pelo Senado Federal o PLS 165/2006 que modifica a CLT para introduzir o princípio da isonomia à Licença Paternidade em relação à maternidade. De acordo com a proposta aprovada no Senado assim ficaria a redação do artigo celetista:

Art. 393-A. Ao empregado é assegurada a licença-paternidade por todo o período da licença-maternidade ou pela parte restante que dela caberia à mãe, em caso de morte, de grave enfermidade, ou do abandono da criança, bem como nos casos de guarda exclusiva do filho pelo pai.

Art. 393-B. O empregado faz jus à licença-paternidade, nos termos do art. 392-A, no caso de adoção de criança, desde que a licença- maternidade não tenha sido requerida.

Tal projeto está em tramitação, no entanto, a sua base é a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, normas em pleno vigor e que vedam tratamento discriminatório da criança adotada para o filho biológico e da mulher em relação ao homem.

Visando sempre o Melhor Interesse da Criança, consagrado pelo ECA e o direito à convivência familiar, garantido pela Constituição, é de extrema importância esse convívio inicial integral, tanto para a criança como para o adotante e nos exatos termos do que diz a legislação.

Ademais, aplicando-se o Princípio da Isonomia e o da Igualdade entre os sexos, ambos presentes no artigo 5º da Lei Maior, não há que se fazer distinção para a concessão da licença ora pretendida, visto que o adotante é sozinho para cuidar da criança.

Além de tudo o que fora exposto, leva-se em consideração a idade da criança adotada. Aos 09 anos de idade as chances de uma criança ser adotada são bastante remotas. É público e notório que a cultura ocidental estabelece uma predileção pela adoção de crianças com menos de 01 anos de idade, onde aquele ser humano guardará menos traços e laços com o mundo de sofreguidão vivido pelo abandono e estará mais facilmente adaptado ao novo lar. O pai que adota uma criança com idade avançada decide também enfrentar esta difícil circunstância.

A atitude da adoção tardia não deve ser apenas respeitada com a igualdade de tratamento. Ela deve ser encarada não como uma adoção comum, mas sim como uma atitude trilhada sobre o caminho do interesse público. O adotante nas condições apresentadas no processo administrativo em apreço escolheu o caminho incerto e nebuloso de iniciar uma convivência com alguém que já tem uma pequena história de vida, ou melhor, uma história de sofrimento pela ausência de uma família. Tal convivência não será fácil. A adaptação irá requerer muita dedicação e muito amor. O mínimo que o Estado pode fazer numa situação de tamanha grandeza pessoal e abdicação particular é deferir tratamento igualitário ao da mulher.

O ECA afirma que “toda criança tem direito a ser criado e educado no seio da sua família”. Toda criança tem, além disso, o direito de tentar ser feliz. A relação mantida nessas circunstâncias representa isso, a busca pela felicidade.

Por todo arcabouço jurídico exposto resta a pertinência lógica de que a concessão integral da Licença Paternidade ao pai nos mesmos moldes da Licença Maternidade destinada à mulher adotante, ou seja, durante o período de 120 dias de acordo com o artigo 392 da CLT é um dever estatal. É um compromisso com o Direito e a justiça. É compromisso com a sociedade.

RODRIGO MACHADO é advogado atuante no ramo do Direito Público.


terça-feira, 21 de junho de 2011

Deixa o menino jogar ô iaiá...





Jobson é mais um menino negro, brincalhão e sorridente como milhares de meninos baianos. Jobson poderia ter nascido na Boca do Rio, no Candeal ou em qualquer bairro de São Salvador. Mas, Jobson nasceu distante. Nasceu lá no norte, na cidade de Conceição do Araguaia. Andou muito chão até chegar aqui. E olha, nessa trilha reuniu muitas histórias.
Em 2009 Jobson foi flagrado com a presença de cocaína em dois jogos diferentes do Campeonato Brasileiro da série A, quando atuava pelo Botafogo. Em julgamento do STJD o garoto foi punido com dois anos de afastamento do futebol e depois teve a sua pena reduzida para seis meses.
Na sessão do STJD ele assumiu ser usuário de crack, um derivado da cocaína, desde o ano de 2008. Cumpriu a sua pena, mas a Agência Mundial Antidoping apresentou recurso perante o Tribunal Arbitral do esporte (TAS) e o julgamento aconteceu hoje, dia 21 de junho de 2011, na cidade suíça de Lausanne. Jobson poderá ter sua pena agravada ou até ser banido do futebol. A decisão poderá sair em até 60 dias.
De acordo com o site da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas “o Pulmão é o principal órgão exposto aos produtos da queima do crack.”* E o pulmão do menino Jobson está a todo vapor com uma velocidade incrível. Já é o maior driblador da série A com média de 6,6 dribles por jogo.
Jobson não fez uso de uma substância para obter vantagem no esporte. Seu problema está relacionado com uma droga de uso recreativo e grave problema social. Poderia ter acabado com a sua carreira, mas não acabou. A Justiça Desportiva poderá cumprir um papel que até o crack não conseguiu: o de destruir os sonhos de um menino.
Nenhuma decisão arbitral ou judicial tem o direito de acabar com a carreira de um garoto. Nenhum Juiz está acima da esperança que todos os seres humanos têm em ver um menino com problemas dar a volta por cima e se recuperar. Esse sim é um exemplo muito maior que um agravamento da pena. Isso sim é uma verdadeira lição de superação.
Jobson precisa continuar jogando não apenas para a torcida do Bahia ou para o deleite dos amantes de futebol. O momento vai muito além do esporte. Jobson necessita continuar trabalhando para ser lembrado como alguém que teve uma segunda chance e conquistou o seu espaço.
O menino Jobson não nasceu na Bahia. Ele “renasceu” na Bahia. Chegou na hora certa. Abriu a porta como quem é de casa e já tomou lugar no coração dos baianos. E pelo seu encanto hoje somos todos uma única torcida. Cantamos a mesma música para ser ouvida bem distante pelos julgadores desse garoto: “Deixe o menino jogar, ô iaiá! Deixe o menino aprender ô iaiá”. Que ele aprenda com a vida e nos ensine a acreditar no Homem.

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* http://www.brasil.gov.br/enfrentandoocrack/efeitos-e-consequencias

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Uma justiça esculpida em madeira.



Essa semana li a decisão judicial de um Desembargador que reproduz em sua personalidade todas as lembranças da infância ao lado do seu pai Marceneiro. O Magistrado julgou recurso em que uma criança requeria indenização do motociclista que atropelou o seu pai, também marceneiro. Um caso muito interessante que nos remete à reflexão.
Eu iniciei a minha vida de Advogado na cidade de Malhador, agreste sergipano. Fui convidado a trabalhar num caso em que os servidores públicos daquela cidade, administrada há décadas pelo coronelismo, não recebiam o salário mínimo mensal. Eram remunerações pífias abaixo do valor legal.
Ajuizamos Mandados de Segurança contra aquela situação perversa. Era um tempo difícil pela ausência de organização deles e o sindicato nem tinha como pagar os custos das minhas viagens para a cidade. Eu dividia a gasolina com os meus sócios e outros sindicatos. Não tínhamos muita estrutura financeira, mas eu tinha uma estrutura sentimental muito forte por aqueles servidores, a qual criava o equilíbrio e me fazia continuar. Lembro que sempre voltava da cidade com o carro repleto de banana, aipim, côco e muitos presentes. Meus honorários eram verdadeiramente in natura.
Conseguimos mudar a cidade com as decisões judiciais que obrigaram a Administração Pública a fazer o pagamento do salário mínimo, mas precisávamos requerer as diferenças remuneratórias não pagas ao longo do tempo. Ajuizamos as ações e, para minha surpresa, o Magistrado negou o pedido de “justiça gratuita”.
Justiça gratuita é um benefício criado pela Lei 1060/50 e garante a isenção do pagamento de despesas judiciárias necessárias a interposição e andamento de um processo. Para ter esse direito é preciso afirmar que é pobre nos termos da lei. Para negar, deve existir prova em contrário. Através desse instituto o cidadão tem acesso à Justiça.
No processo de Malhador estávamos falando de servidores que não ganhavam nem um salário mínimo. A condição de pobreza era explícita, mas o julgador negou. Recorremos perante o Tribunal de Justiça através de um recurso denominado “Agravo de Instrumento” e conseguimos a justiça gratuita para todos aqueles servidores.
Essa semana um caso idêntico aconteceu no Tribunal de Justiça de São Paulo e a decisão foi uma obra de arte da literatura jurídica. Foi uma decisão do Desembargador José Luiz Palma Bisson, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Pelo seu voto, foi concedida a gratuidade judiciária contra decisão de um Juiz em Marília (SP). A ação foi movida por uma criança contra o motociclista que atropelou e matou o seu pai, um marceneiro. A criança pediu a gratuidade judiciária. O Julgador de Marília negou o pedido. O Desembargador também é filho de um marceneiro e a sensibilidade da decisão toca a alma de qualquer um. Vejam:

“É o relatório.

Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.

Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.

Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.

O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.

Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos...

Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.

É como marceneiro que voto.

JOSÉ LUIZ PALMA BISSON
"Relator Sorteado”

terça-feira, 17 de maio de 2011

O conservadorismo do STF e a família homoafetiva.



Hannah Arendt disse que pertencia a uma geração em que tudo aquilo que julgava impossível de acontecer, aconteceu. Essa é a sensação que tomou conta de diversos operadores do Direito no último dia 05 de maio de 2011: O STF reconheceu a constitucionalidade das relações homoafetivas.
Em minha vida de advogado ainda encontro um Judiciário que permeia os caminhos do conservadorismo. A imensa maioria de seus quadros tem origem nas camadas abastadas da sociedade e isso influencia nos seus julgados. Além do mais, uma sociedade machista e homofóbica não teria um Judiciário totalmente afastado desses preconceitos. Mas, nem tudo é pesadelo.
No julgamento da ADI 4377 e da ADPF 132, o Supremo Tribunal Federal comandou uma das maiores mudanças em nosso ordenamento jurídico ao definir a união entre pessoas do mesmo sexo enquanto entidade familiar. Por tal interpretação, a Corte Suprema interferiu no cotidiano de milhares de pessoas, sejam elas homossexuais ou heterossexuais, uma vez que concedeu exatamente os mesmos direitos a todos casais que mantêm uma união estável, independentemente do sexo, e caracterizou como inconstitucional qualquer prática discriminatória.
A decisão do STF deixou o Congresso Nacional em maus lençóis. O Poder Legislativo ficou inerte durante muitos anos sob a pressão de religiosos conservadores e não conseguiu cumprir o seu papel normativo regulamentador. Diante da omissão, coube ao Poder Judiciário dar efetividade aos preceitos constitucionais que vedam qualquer forma de discriminação, a exemplo do artigo 3º que exterioriza como um dos quatro objetivos fundamentais da nossa República a promoção o “bem de todos, sem preconceitos de (...) sexo” e ainda veda “quaisquer outras formas de discriminação”.
O pedido das ações era o de interpretação do artigo 1723 do Código Civil “conforme a Constituição” para a aplicação de que a união estável não pode ser somente reconhecida na relação entre o homem e a mulher. Nos votos dos Ministros do Supremo, o artigo 226 da Constituição Federal foi interpretado extensivamente para dar espaço ao reconhecimento da família homoafetiva. A partir daí, foi reconhecida uma série de direitos dos homossexuais.
No olhar do julgamento da Corte, as normas constitucionais não excluem outra modalidade de entidade familiar. Quando a CF diz no § 3º do artigo 226 que a união estável será reconhecida “entre o homem e a mulher” é uma afirmação que combate o machismo, mas não para identificar proibição, uma vez que como bem ressaltou o Ministro Carlos Britto, relator das ações, “(...) a normação desse novo tipo de união, agora expressamente referida à dualidade do homem e da mulher, também se deve ao propósito constitucional de não perder a menor oportunidade de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano, (...), tal a renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós (não se pode esquecer que até 1962, a mulher era juridicamente categorizada como relativamente incapaz, para os atos da vida civil, nos termos da redação original do art. 6º do Código Civil de 1916);

O STF numa única decisão falou sobre o reconhecimento da união homoafetiva, colocou a homofobia no rol das ilicitudes, abriu caminho para a adoção por casais homossexuais e ainda ressaltou a vontade constitucional de abolir o machismo.
O voto do Ministro Carlos Britto, protagonista de tal julgamento, se transformou em leitura indispensável aos militantes de Direitos Humanos, aos operadores do Direito e aos amantes. É, na verdade, uma carta de amor destinada aos seres humanos. É humanista, fraterno, poético e filosófico. Entrou para o rol dos maiores documentos jurídicos brasileiros.
Carlos Britto teceu amiúde o medo que as pessoas têm ao amor diferente daquilo que é socialmente aceito como natural. Mas, o que é anti-natural no ato de amar indivíduos de mesmo sexo? No Direito, “tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. No amor, a regra é bem parecida, tudo aquilo que lhe dá carinho, que lhe faz bem, pode ser trilhado.
Esse é o conservadorismo do STF que pretendo ressaltar de agora em diante. Conservar as garantias do amor, da fraternidade e do respeito ao interesse do outro. Cada um tem a sua forma de amar. E cada ser humano tem o direito de ser respeitado.
Eis um julgamento a ser comemorado por todos que acreditam na transformação de uma sociedade verdadeiramente igualitária. Os nossos problemas dentro do sistema capitalista ainda não acabaram, mas uma parcela de nossos cidadãos está mais feliz. Para eles, a decisão do Supremo representou um arco-íris que se mostra numa bela manhã de sol, sol de liberdade e esperança. A discriminação ainda não acabou, mas nessa batalha ela foi derrotada.