terça-feira, 21 de junho de 2011

Deixa o menino jogar ô iaiá...





Jobson é mais um menino negro, brincalhão e sorridente como milhares de meninos baianos. Jobson poderia ter nascido na Boca do Rio, no Candeal ou em qualquer bairro de São Salvador. Mas, Jobson nasceu distante. Nasceu lá no norte, na cidade de Conceição do Araguaia. Andou muito chão até chegar aqui. E olha, nessa trilha reuniu muitas histórias.
Em 2009 Jobson foi flagrado com a presença de cocaína em dois jogos diferentes do Campeonato Brasileiro da série A, quando atuava pelo Botafogo. Em julgamento do STJD o garoto foi punido com dois anos de afastamento do futebol e depois teve a sua pena reduzida para seis meses.
Na sessão do STJD ele assumiu ser usuário de crack, um derivado da cocaína, desde o ano de 2008. Cumpriu a sua pena, mas a Agência Mundial Antidoping apresentou recurso perante o Tribunal Arbitral do esporte (TAS) e o julgamento aconteceu hoje, dia 21 de junho de 2011, na cidade suíça de Lausanne. Jobson poderá ter sua pena agravada ou até ser banido do futebol. A decisão poderá sair em até 60 dias.
De acordo com o site da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas “o Pulmão é o principal órgão exposto aos produtos da queima do crack.”* E o pulmão do menino Jobson está a todo vapor com uma velocidade incrível. Já é o maior driblador da série A com média de 6,6 dribles por jogo.
Jobson não fez uso de uma substância para obter vantagem no esporte. Seu problema está relacionado com uma droga de uso recreativo e grave problema social. Poderia ter acabado com a sua carreira, mas não acabou. A Justiça Desportiva poderá cumprir um papel que até o crack não conseguiu: o de destruir os sonhos de um menino.
Nenhuma decisão arbitral ou judicial tem o direito de acabar com a carreira de um garoto. Nenhum Juiz está acima da esperança que todos os seres humanos têm em ver um menino com problemas dar a volta por cima e se recuperar. Esse sim é um exemplo muito maior que um agravamento da pena. Isso sim é uma verdadeira lição de superação.
Jobson precisa continuar jogando não apenas para a torcida do Bahia ou para o deleite dos amantes de futebol. O momento vai muito além do esporte. Jobson necessita continuar trabalhando para ser lembrado como alguém que teve uma segunda chance e conquistou o seu espaço.
O menino Jobson não nasceu na Bahia. Ele “renasceu” na Bahia. Chegou na hora certa. Abriu a porta como quem é de casa e já tomou lugar no coração dos baianos. E pelo seu encanto hoje somos todos uma única torcida. Cantamos a mesma música para ser ouvida bem distante pelos julgadores desse garoto: “Deixe o menino jogar, ô iaiá! Deixe o menino aprender ô iaiá”. Que ele aprenda com a vida e nos ensine a acreditar no Homem.

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* http://www.brasil.gov.br/enfrentandoocrack/efeitos-e-consequencias

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Uma justiça esculpida em madeira.



Essa semana li a decisão judicial de um Desembargador que reproduz em sua personalidade todas as lembranças da infância ao lado do seu pai Marceneiro. O Magistrado julgou recurso em que uma criança requeria indenização do motociclista que atropelou o seu pai, também marceneiro. Um caso muito interessante que nos remete à reflexão.
Eu iniciei a minha vida de Advogado na cidade de Malhador, agreste sergipano. Fui convidado a trabalhar num caso em que os servidores públicos daquela cidade, administrada há décadas pelo coronelismo, não recebiam o salário mínimo mensal. Eram remunerações pífias abaixo do valor legal.
Ajuizamos Mandados de Segurança contra aquela situação perversa. Era um tempo difícil pela ausência de organização deles e o sindicato nem tinha como pagar os custos das minhas viagens para a cidade. Eu dividia a gasolina com os meus sócios e outros sindicatos. Não tínhamos muita estrutura financeira, mas eu tinha uma estrutura sentimental muito forte por aqueles servidores, a qual criava o equilíbrio e me fazia continuar. Lembro que sempre voltava da cidade com o carro repleto de banana, aipim, côco e muitos presentes. Meus honorários eram verdadeiramente in natura.
Conseguimos mudar a cidade com as decisões judiciais que obrigaram a Administração Pública a fazer o pagamento do salário mínimo, mas precisávamos requerer as diferenças remuneratórias não pagas ao longo do tempo. Ajuizamos as ações e, para minha surpresa, o Magistrado negou o pedido de “justiça gratuita”.
Justiça gratuita é um benefício criado pela Lei 1060/50 e garante a isenção do pagamento de despesas judiciárias necessárias a interposição e andamento de um processo. Para ter esse direito é preciso afirmar que é pobre nos termos da lei. Para negar, deve existir prova em contrário. Através desse instituto o cidadão tem acesso à Justiça.
No processo de Malhador estávamos falando de servidores que não ganhavam nem um salário mínimo. A condição de pobreza era explícita, mas o julgador negou. Recorremos perante o Tribunal de Justiça através de um recurso denominado “Agravo de Instrumento” e conseguimos a justiça gratuita para todos aqueles servidores.
Essa semana um caso idêntico aconteceu no Tribunal de Justiça de São Paulo e a decisão foi uma obra de arte da literatura jurídica. Foi uma decisão do Desembargador José Luiz Palma Bisson, do Tribunal de Justiça de São Paulo. Pelo seu voto, foi concedida a gratuidade judiciária contra decisão de um Juiz em Marília (SP). A ação foi movida por uma criança contra o motociclista que atropelou e matou o seu pai, um marceneiro. A criança pediu a gratuidade judiciária. O Julgador de Marília negou o pedido. O Desembargador também é filho de um marceneiro e a sensibilidade da decisão toca a alma de qualquer um. Vejam:

“É o relatório.

Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.

Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em paubrasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes vêem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.

Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta Terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.

O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.

Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.

Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.

Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos...

Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.

É como marceneiro que voto.

JOSÉ LUIZ PALMA BISSON
"Relator Sorteado”